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O filme “Perfect Sense” como reflexão sobre o coronavírus

 

A atual conjuntura apocalíptica me lembra o filme “Sentidos do Amor”. Faz já algum tempo que escrevi esta reflexão sobre o filme “Perfect Sense”, traduzida ao português como “Sentidos do Amor”.  Na época, escrevi para um curso que eu estava fazendo. Após mandá-la para o professor, ficou esquecida numa pastinha do computador. 

 

Perante a atual situação, veio-me à lembrança e resolvi publicá-la. Vamos lá! 

 

O filme britânico “Perfect Sense”, dirigido por David Mackenzie, com roteiro de Kim Fupz Aakeson, e tendo Ewan McGregor e Eva Green como protagonistas, estreou em 2011, ano em que foram muito discutidas as interpretações da profecia Maia de que o fim do mundo se daria em 2012, algo muito explorado em filmes de temática apocalíptica. Diferentemente das demais, “Perfec Sense” não aborda esse final através de catástrofes naturais, guerras, invasões alienígenas, ameaças nucleares nem nada parecido, senão através de uma epidemia global na qual as pessoas, após uma crise emocional muito intensa, vão perdendo os sentidos, um a um: olfato, paladar, audição e visão, respectivamente. A cada perda, muitos se sentiam obrigados a se readaptar à sua nova realidade e outros não sabem bem como reagir, enquanto os personagens principais, Michael e Susan, um cozinheiro e uma epidemiologista, vivem uma história de amor no transcurso do filme.

 

Trama sintetizada, começarei a expor algumas reflexões que o filme gerou em mim, desde a sua temática, passando pela análise das crises que antecedem a perda dos sentidos e sua relação com esta, a psicologia dos personagens, até minhas conclusões pessoais.

 

O apocalipse e a perda dos sentidos

 

Segundo o dicionário “Dicio”, apocalipse significa “qualquer acontecimento catastrófico, geralmente relativo ao fim do mundo ou à extinção da humanidade.” Em “Perfect Sense” não se vislumbra tal extinção, embora alguns possam imaginar ou interpretar que esse seria seu desfecho natural, pressupondo que as perdas dos sentidos continuariam e que as pessoas se tornariam incapazes de se cuidar por si mesmas, algo em que eu, particularmente, não acredito. 

 

Na época em que escrevi este artigo, fi-lo em espanhol e utilizei a definição da RAE (Real Academia Espanhola) para o termo “apocalipse”. Numa definição mais completa, a destruição da humanidade é atribuída aos seres humanos. Como isso se manifesta no filme? Os especialistas, entre os quais está a nossa protagonista, Susan, não conseguem encontrar a origem da pandemia. Em nenhum momento se cogita a possibilidade de que seja o resultado do uso de uma arma química, tampouco compreendem os mecanismos de um contágio tão rápido e alarmante, se é que eles existem, e uma predisposição ou mutação genética não explicaria por que pessoas do mundo inteiro se contagiavam tão rápido. 

 

Minha leitura pessoal é que o ser humano foi o responsável. E fez isso mediante uma paulatina desconexão de si mesmo, dos outros e do Universo. Se deixamos de utilizar partes de nosso corpo, elas vão se “oxidando” porque a vida é movimento, e os sentidos se interconectam com nosso cérebro. Evidentemente o filme levou isso a um grau extremo, mas não podemos ignorar que estamos nos desconectando. Olhamos, mas não vemos. Cheiramos e sentimos o gosto, mas não somos conscientes disso. 

 

Tal como aborda Brian Draper, no seu livro “A inteligência espiritual” (1), quando acordamos todas as manhãs, estamos perante a oportunidade de acordar espiritualmente, no entanto, ligamos a TV, distraímo-nos com um barulho de fundo que nem sequer prestamos atenção; tomamos o café da manhã voando, sem desfrutar do cheiro e do sabor dos alimentos; não tocamos nos nossos seres queridos, nem nos conectamos com eles, com a nossa mente, nosso coração e nossos sentidos. Fica nos faltando esse “conhecimento direto do que acontece tanto fora quanto dentro de nós mesmos, o tempo todo” (2), que nos ensina a praticar a “Atenção Plena”. Acaso perder todo o contato com a realidade não é uma espécie de morte?

 

Sem sentido?

 

Os primeiros sentidos que a humanidade perde no filme são, respectivamente, o olfato e o paladar. Antes da perda do primeiro, ocorre uma profunda crise de tristeza, de dor, de aflição. Reflexionemos um pouco sobre isso. 

 

É incrível como os odores podem nos fazer viajar no tempo e no espaço, fazendo-nos reviver experiências maravilhosas em um grau de intensidade impressionante. Certamente me causaria uma tristeza imensa antever a perda dessa capacidade de recordar de modo tão especial, razão pela qual posso compreender o que os personagens sentem no filme, antes de perder o sentido do olfato. Na minha mente, somente nesse momento eles percebem sua importância, consciente ou inconscientemente, das muitas oportunidades que perderam por não as ter aproveitado mais, como na cena posterior à que Michael e Susan percam o olfato e ele lamenta não ter retido o cheiro dela no dia anterior. (3) 

 

O segundo sentido que perdem, após uma crise de terror, pânico, alucinação, medo da morte e fome compulsiva, é o paladar, o que para Michael, como cozinheiro, representa um golpe muito mais duro, já que seu trabalho se vincula estreitamente com o olfato e o paladar, mesmo que todos tenham sido afetados da mesma forma durante a crise prévia.

 

Enquanto assistia ao filme, eu me perguntava se havia alguma conexão entre cada crise e a perda do sentido que vinha depois e, tal como no caso do olfato, acho que encontrei a resposta nos meus queridos livros de Neurociência. 

 

Segundo José Viosca, no seu livro “Creando el mundo” (4), o olfato e o paladar desempenham o papel de guardiões químicos do corpo, já que por eles percebemos quais alimentos consumir e quais evitar, seja por seu valor nutritivo ou por estarem estragados, ou seja, o perfeito funcionamento desses dois sentidos garante a nossa sobrevivência. Tais explicações revelam por que os personagens sentiam tanto pânico. Já não poderiam assegurar suas vidas por si mesmos e tentavam reter a lembrança dos sabores desesperadamente, devorando tudo o que podiam, fosse ou não comestível. 

 

Entretanto, a vida continua e eles têm que se adaptar, acreditar que as pessoas serão honestas ao oferecer os alimentos, que não distribuirão alimentos impróprios para o consumo. Nesse ponto do filme, surge uma metáfora muito interessante que discutiremos daqui a pouco, quando o dono do restaurante se desespera por acreditar que terão que fechar as portas ou cozinhar “gordura e farinha”. Mas Michael não está disposto a se entregar e voltam a se reinventar (se me permite o pleonasmo). Se ao perder o olfato tiveram que cozinhar como se os clientes estivessem resfriados, agora deveriam se concentrar mais na textura, nas cores etc., mas jamais servir alimentos da categoria da gordura e da farinha. 

 

Que interessante o fato de serem “obrigados” a se conectar mais conscientemente com os outros sentidos!

 

 

A próxima perda é a do sentido da audição, o que acontece após uma crise de fúria e ódio na qual as pessoas gritam, iracundas e quebram tudo pela frente. Quebram inclusive os vínculos entre elas. Dá-se início a um período no qual predomina a solidão. 

 

Uma vez mais me perguntava por que a ira antecedia a perda da audição e me lembrei de um ensinamento tibetano, segundo o qual, as pessoas gritam quando seus corações se distanciam. Minha interpretação, nesse ponto, exigia-me também compreender por que a solidão sucedia a perda da audição e minha percepção é que, depois de tantas perdas e do apego aos outros como uma forma para se sentir seguras, as pessoas agora precisassem passar por um período de introspeção. Deveriam processar o que havia acontecido, encontrar-se com quem tinham se transformado após passar pelas reiteradas perdas. E embora alguns não chegassem a esse nível de compreensão e não soubessem como reagir, ou reagiam mal ante sua realidade, é justamente nessa etapa que eles finamente deixam de se adaptar a passam a se preparar para o que poderá acontecer, intuindo que perderiam a visão, embora como dizia a voz em “off” no filme, “as pessoas se preparam para o pior, mas esperam o melhor”, enfocam-se agora no que é verdadeiramente importante, “muito além da gordura e da farinha”. (5) 

 

Uma vez que chegaram a esse nível de compreensão, sentem um vazio, um frio intenso e uma necessidade imperiosa de estar com quem amam. “Foi assim que a escuridão desceu sobre o mundo” (6), os personagens perderam o sentido da visão e passaram, ao meu ver, ao ápice do filme. 

 

Diferentemente das crises que marcaram a perda dos sentidos anteriores, o que sentiram antes da perda da visão não foi doloroso nem agressivo, senão “uma apreciação profunda do significado de estar vivo” (7). Queriam compartilhar com os demais, “dar calor, compreensão, aceitação, perdão, amor...” (8). Chega de medos, ira, compulsões. Paira no ar a plena consciência de si mesmo, do outro e da vida.

A sombra de Susan e Michael

 

Susan é uma mulher que se desespera por não ter uma relação, enquanto Michael é um homem incapaz de estabelecer vínculos com mulheres. Nem sequer consegue dormir com elas na mesma cama depois do sexo. A dificuldade de ambos para se relacionar esconde conflitos internos que jazem no mais profundo dos seus seres sem que os expressem. 

 

Isso até eles exporem suas sombras em uma brincadeira que Susan chama de “me faça especial”. Ela admite que às vezes odeia seus sobrinhos por não poder ter filhos, em consequência de transtornos alimentícios sofridos na juventude, e finge que isso não a afeta porque tem um trabalho interessante. Michael confessa ter abandonado uma namorada que ficou doente e, após seu falecimento, visita seu túmulo para se sentir culpado. 

 

Após a confissão do casal, nota-se que a percepção de ambos sobre si mesmos está tão deturpada que se autodenominam “senhor e senhora imbecil”. 

 

Suas sombras poderiam perfeitamente personalizar as da vida real. Temos tanta dificuldade para lidar com nossas mazelas e imperfeições que as reprimimos e fingimos que não existem até elas se manifestarem nas nossas vidas na forma de uma patologia, seja ela física ou mental, num chamado imperioso para olharmos para dentro, nos reconciliarmos com quem somos e aprender a nos amarmos com e apesar da nossa dualidade de luz e sombra. 

 

Seus personagens representam a sociedade e vão crescendo psicológica e emocionalmente durante o filme. Expor-se perante o outro é a parte da extrema, mas eficiente terapia da perda dos sentidos. Precisavam encarar e resolver seus conflitos para se curar, desenvolver a autoestima e se perdoar para poder, finalmente, relacionar-se com os outros de forma saudável. 

 

Segundo José Viosca, citado antes, os sentidos são a fonte de todo ou de quase todo o nosso conhecimento, e é através deles que acessamos a realidade. Michael e Susan, ao contrário, tiveram que perdê-los para olharem para dentro.

 

Gordura e farinha

 

A metáfora da gordura e a farinha me chamou muito a atenção por aparecer de forma recorrente no filme. Se no começo parecia se referir somente à comida não saudável, seu sentido pode ser facilmente ampliado ao longo da trama. 

 

No livro “Placer y recompensa” (10) o autor, Javier Correas Lauffer, aborda pesquisas que concluem que a comida, tal como a cocaína, aumenta os níveis de dopamina no cérebro, razão pela qual gera compulsão, e que os alimentos ricos em glicose ou gordura incrementam esses níveis. A farinha refinada possui um alto índice glicêmico e, como não oferece saciedade suficiente pela baixa quantidade de fibras, demanda maior consumo. Evidentemente não podemos comparar os efeitos da cocaína aos da comida ou teríamos que retirar todos os alimentos com alto índice glicêmico do mercado.

 

Como mencionei antes, após perder a audição, as pessoas se concentram no que é importante, “muito além da gordura e a farinha”, o que reforça a acepção da metáfora. A gordura e a farinha representam tudo o que é supérfluo, fútil, o que não somente é dispensável senão também prejudicial. A perda paulatina dos sentidos representa o longo e necessário caminho que lhes permite, finalmente, perceber isso e eliminá-las das suas vidas.

Conclusões

 

O filme, sem dúvida, é objeto de profundas reflexões e conclusões úteis para nossa vida. Os personagens passam por um difícil, mas profundo, processo de maturidade psicológica e crescimento espiritual. Trata-se de autoconhecimento, autoaceitação e aceitação dos demais, sentimento de pertencimento e a geração de vínculos saudáveis.

 

Antes de perder a visão, fala-se sobre um momento de luminosidade, “uma vibração dividida no lóbulo temporal” (11), denominado por Danah Zohar e Ian Marshall, no livro “Inteligência Espiritual”, como o ponto divino no cérebro, relacionado a “intensas experiências espirituais” e ao centro emocional mnemotécnico do cérebro. Afirmam que as experiências costumam durar segundos, mas influenciam a vida emocional de uma pessoa pelo resto da vida, o que às vezes se chama “transformador de vida”. (12) Os personagens são convidados a dar menos importância à gordura e à farinha” - metáfora tanto para todo tipo de alimento que prejudica o corpo como para tudo aquilo que faz mal à alma- e se concentrar nas coisas simples, em si mesmos, nos outros, na vida; a desenvolver o verdadeiro “perfect sense”, o sentido da existência em sua mais plena acepção. 

 

Refletir sobre o filme “Perfect Sense” poderia nos ajudar a encarar o isolamento forçado pela pandemia do coronavírus. Apesar de não parecer agradável nem divertido ficarmos presos em casa, poderia ser uma oportunidade enriquecedora de repensar nossos valores, nossos laços, nossa forma de encarar a vida. Se bem usada, nossa liberdade chegaria no nosso melhor momento, diante da nossa melhor versão, madura e consciente. 

 

Eu diria até que, no caso do coronavírus no Brasil, o isolamento em si já é um privilégio, pois há uma enorme parte da população que não pode se dar ao luxo de se isolar. Algumas pessoas nem sequer possuem uma casa para morar, outras, embora as tenham, por seu baixo poder aquisitivo, precisam continuar se arriscando para ir trabalhar, pois, se não morrerem pela ação do coronavírus, morrerão de fome. Enquanto isso, muitos estão mais preocupados em encher suas despensas e por ficar presos em casa, sem poder sair, sem pensar em quem não tem condições financeiras para armazenar alimentos. 

 

Repensar nosso ser, nossas vidas, é também repensar nosso papel no mundo, nossa responsabilidade perante as pessoas à margem da sociedade, sem acesso a condições básicas para viver, que apenas sobrevivem. 

 

Será que aproveitaremos o isolamento que nos está sendo imposto para amadurecer e sair da birrenta infância espiritual? 

 

Espero que sim.

 

Foto: Freepik

 

 

Referências

 

1. DRAPER, Brian. La inteligencia espiritual. P. 14.

2. https://widemat.com/que-es-mindfulness-ejercicios-meditacion/

3. 32min14s

4. VIOSCA, Creando el mundo. P.99.

5. 1h20min33s

6. 1h22min53s

7. 1h23:58

8. 1h24min23s

9. VIOSCA______. P. 10-11.

10. LAUFFER. J. Correas. Placer y recompensa. P. 75.

11. 1h23mins28s

12. ZOHAR, Danah. MARSHALL, Ian. Inteligencia espiritual. P. 95-96


 

Escrito por Marinalva Silva

Terapeuta Holística

Fundadora de Spiralis Ser Integral